quarta-feira, 4 de julho de 2012

O que vem depois do ato falho?

Nossa linguagem é astuta e muito mais esperta que nós mesmos. Ela nos revela.
Para o bem da civilização nós nos regulamos para evitar os deslizes do súbito engano.
Controle excessivo, não posso errar!!!
E para o nosso próprio bem algo escapa aos ouvidos atentos.
Para o bem geral nós necessitamos de represárias muitas vezes. Apesar do ímpeto fluir mais fácil.
Mas as coisas não podem ser gerenciadas pelo impulso, claro que não.
Não vejo beneficio nas verborréias doentias e sem censura que nos ilude a uma certa liberdade de se poder falar, de impor-se pelo falatório.
Do que quero tratar então? Do famoso ato falho psicanalítico.
Freud foi genial ao perceber algo que está ai, totalmente disponível.
Fico fascinada pela sutileza de um erro bobo, de uma leda confusão entre as palavras, que também fala sobre nós e muito!
Ao cometer um ato falho recente na minha análise e ao constatar o que aquilo significava, tratei de me refazer. E pude ouvir! Era justamente essa falha vil que me faria retomar o trabalho das minhas questões.
"É uma puta falta de sacanagem" - clássico ato falho do youtube - ficar reparando essas tolices.
Convenço-me que ao se tratar dos seres humanos, com capacidade, inteligência para se articular e se comunicar é incrível como temos oportunidades ímpares de aprender até nos atos falhos.
No constrangimento inevitável e na surpresa desagradável o ato falho clarifica as coisas.
Saibamos aproveitar!

"Errar é aprender, viver é deixar viver"




domingo, 1 de julho de 2012

Além do que se vê

Poema em linha reta (Fernando Pessoa - Alvaro de Campos)


Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.

... E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...
Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,

Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?

Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?

Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que venho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.