terça-feira, 30 de abril de 2013

Ficar na minha

Ana chamou Zé para um passeio. Ele não queria mas sentiu que magoaria Ana. Zé foi.

Roberto amava Marta de uma forma que ela já não queria. Mas já que estavam juntos, ela continuava ali.

Clarice e Bárbara são amigas. Bárbara sempre agride Clarice com o seu já conhecido temperamento explosivo. Clarice se importa mas se obriga a relevar todas as grosserias da amiga.

Carlos faz piada de tudo e todos e compele a quem queira ou não um senso de humor, afinal tem-se que rir de tudo.

Gabriela gosta de Henrique. Henrique tem outra e toda sexta se dirige a Gabriela. Gabriela não quer mas não vê saída, gosta dessa insistência, mas não gosta também.

Nina procura João, não tem resposta. Nina aparece para João, não tem resposta. Nina liga para João, não tem resposta. Nina chateia-se. Nina vai na casa de João, não tem resposta. Nina quer também ignorar. Nina liga para o amigo do João, tem resposta. Nina manda mensagem para João, não tem resposta.



Uma vida, um drama cotidiano.
Uma vida revela de quem ela é no que é pequeno.
Isso não se resolve fácil.
Uma vida, um drama cotidiano de amor e de amizade.
'Tenho que', 'não posso deixar de ir', 'o que vão pensar', 'como não vou fazer isso'?
Onde eu acho o que eu desejo? No que está em mim.
Uma vida, um drama cotidiano, de ir ou não ir, de não ficar e de permanecer.
Triste sem, pior com o que eu não quero.
Posso não querer ficar sozinho, mas eu posso ficar sozinho.
Ficar na minha.





segunda-feira, 22 de abril de 2013

Por não estarem distraídos - Clarice Lispector

"Havia a levíssima embriaguez de andarem juntos, a alegria como quando se sente a garganta um pouco seca e se vê que por admiração se estava de boca entreaberta: eles respiravam de antemão o ar que estava à frente, e ter esta sede era a própria água deles. Andavam por ruas falando e rindo, falavam e riam para dar matéria e peso à levíssima embriaguez que era a alegria da sede deles. Por causa de carros e pessoas, às vezes eles se tocavam, e ao toque - a sede é a graça, mas as águas são uma beleza de escuras - e ao toque  brilhava o brilho da água deles, a boca ficando um pouco mais seca de admiração. Como eles se admiravam estarem juntos! Até que tudo se transformou em não. Tudo se transformou em não quando eles quiseram essa mesma alegria deles. Então a grande dança dos erros. O cerimonial das palavras desacertadas. Ele procurava e não via, ela que que estava ali, no entanto. No entanto ele que estava ali. Tudo errou, e havia grande poeira nas ruas e quanto mais erravam mais aspereza queriam, sem um sorriso. Tudo só porque tinham prestado atenção, só porque eles não estavam mais bastante distraídos. Só porque, de súbito exigentes e duros, quiseram ter o que já tinham. Tudo porque quiseram dar um nome; porque quiseram ser, eles que já eram. Foram então aprender que, não se estando distraído, o telefone não toca, e é preciso sair de casa para que a carta chegue, e quando o telefone finalmente toca, o deserto da espera já cortou os fios. Tudo, tudo, por não estarem mais distraídos."

sexta-feira, 19 de abril de 2013

Um pequeno deslize


Um arranjo te leva a aceitar seu destino.
Nunca muda, nada muda, é assim que é.
Não me conformo. Há de haver uma saída qualquer.
O desejo insiste. A angústia aumenta.
Um descontrole surge em controlar tudo que está pronto.
A história se repete. Espera-se o novo e ele não vem.
Busca-se conforto em respirar aquela sensação de alívio que não chega.
Você está fazendo isso errado, um dia entende assim.
Mudaram-se os formatos, os nomes, os enredos, o desfecho não muda.
Os dias são sem sabor, aqui e ali, não se vão.
Agarrados no tempo de uma vida que não se quer levar.
Principia um empenho de se colocar diante dos fatos.
Ah, os fatos. Esses já estão tão bem colocados em uma perspectiva.
Rearranjá-los de outra maneira, mudar a ótica e a ética.
Deslizar, deslocar, adotar outra posição no seu próprio mundo.
Esvaziar o drama. Não esperar o critério alheio.
Uma abstração tão simples, só que não.
Aceitar as escolhas, os afetos, as indiferenças.
Sem preciosismos, sem pretensão, sem razão.
Não ter respostas, não saber, não imaginar, não investigar.
Um contento haverá em deixar como está.
E sem perceber nada será como antes
Se deixar deslizar.


sexta-feira, 5 de abril de 2013

Ao meu redor a vida acontecia

Um pouco a olhar de dentro para fora.
Pessoas a passar por ali.
Alguns trabalhadores possivelmente a pensar: mais uma semana de ofício.
Outros como eu, só espiava.
Um casal a se abraçar, pelo jeito, pelo toque, deduzi, se enamoram.
Aquilo que eu via era bom de ver.
Pensava em mim. Queria observar mais.
Tudo era pacato e havia uma leve brisa.
Barulhos inconvenientes não chegavam a atrapalhar.
Pude percebê-los como uma música de fundo. Certa de que sempre estiveram ali.
Transitavam idosos, crianças e motores.
Coisas de uma vida bem comum.
Um ambulante a gritar: "Olha a empadinha!"
Outro, vendedor de vassouras, não teve a mesma espontaneidade.
Era bom de ver. A vida acontecia.
Eu pensava: roubei o instante da vida de alguém.
Não saberão que foram observados.  O que sentiriam se soubessem?
A vida seguiria e talvez eu ganharia algum sorriso.
E ganhei. O meu. A felicidade me tocou sinalizando-me, não estás sozinha.
Ao meu redor a vida acontecia e em mim ela era vivificada intensamente.