sábado, 12 de maio de 2012

Sensibilidade de um gênio - história da Geni

Geni e o Zepelim

 Chico Buarque

"De tudo que é nego torto, do mangue e do cais do porto, ela já foi namorada.
O seu corpo é dos errantes, dos cegos, dos retirantes, é de quem não tem mais nada.
Dá-se assim desde menina, na garagem, na cantina, atrás do tanque, no mato.
É a rainha dos detentos, das loucas, dos lazarentos, dos moleques do internato.
E também vai amiúde, co'os velhinhos sem saúde e  as viúvas sem porvir.
Ela é um poço de bondade, e é por isso que a cidade vive sempre a repetir:
"Joga pedra na Geni, joga pedra na Geni, ela é feita pra apanhar, ela é boa de cuspir, ela dá pra qualquer um, maldita Geni".
Um dia surgiu, brilhante entre as nuvens, flutuante um enorme zepelim. Pairou sobre os edifícios abriu dois mil orifícios com dois mil canhões assim. A cidade apavorada, se quedou paralisada, pronta pra virar geléia. Mas do zepelim gigante desceu o seu comandante dizendo - "Mudei de idéia- Quando vi nesta cidade- Tanto horror e iniqüidade- Resolvi tudo explodir- Mas posso evitar o drama- se aquela formosa dama- Esta noite me servir."
Essa dama era Geni, mas não pode ser Geni, ela é feita pra apanhar, ela é boa de cuspir, ela dá pra qualquer um maldita Geni.
Mas de fato, logo ela tão coitada e tão singela cativara o forasteiro, o guerreiro tão vistoso, tão temido e poderoso era dela, prisioneiro. Acontece que a donzela- e isso era segredo dela também tinha seus caprichos e a deitar com homem tão nobre tão cheirando a brilho e a cobre preferia amar com os bichos. Ao ouvir tal heresia, a cidade em romaria foi beijar a sua mão. O prefeito de joelhos, o bispo de olhos vermelhos e o banqueiro com um milhão. "Vai com ele, vai Geni, vai com ele, vai Geni, você pode nos salvar, você vai nos redimir. Você dá pra qualquer um, bendita Geni."
Foram tantos os pedidos, tão sinceros, tão sentidos que ela dominou seu asco. Nessa noite lancinante entregou-se a tal amante como quem dá-se ao carrasco ele fez tanta sujeira, lambuzou-se a noite inteira, até ficar saciado. E nem bem amanhecia, partiu numa nuvem fria com seu zepelim prateado. Num suspiro aliviado ela se virou de lado e tentou até sorrir, mas logo raiou o dia. E a cidade em cantoria, não deixou ela dormir. "Joga pedra na Geni, joga bosta na Geni, ela é feita pra apanhar, ela é boa de cuspir, ela dá pra qualquer um, maldita Geni".

http://www.vagalume.com.br/chico-buarque/geni-e-o-zepelim.html#ixzz1ugXH1FSS

sábado, 5 de maio de 2012

'Eu finjo ter paciência'

Nesse texto um exercício do 'EU'!
Sei que muitas vezes escrevo na primeira pessoa do plural, generalizando minhas considerações aos demais. Peço desculpas por isso.
Uma primeira colocação:  é difícil assumir certas impressões - vai que estou sozinha nisso!

Roubei essa frase da música do Lenine, porque ela sintetiza bem o sentimento atual do meu 'EU'.
Quem puder, me ajude a distinguir o que para mim hoje se confunde:
Tolerância/ Paciência/ Comodismo/ Fingimento...
No exercício diário de ter paciência, percebi que certas coisas não se pode tolerar.
A parcimônia por ora é nociva. Um mal difícil de se dissipar.
Assumo! Finjo ter paciência em momentos impróprios. E quando devia ela me escapa, não sou de ferro. Sou uma pessoa inquieta demais para isso.
Minha inquietude me leva a indagar até de forma excessiva e por vezes sem razão.
E o que sobressai é um sentimento forte de inadequação.
Os questionamentos não são bem-vistos! Discutir não é o que interessa. A palavra de ordem é ordem!
O que faço eu então, com os argumentos, coloco no bolso? Uso numa próxima ocasião? Quando terei espaço?
'Eu finjo ter paciência!'  Acho que deveria parar de fingir e realmente ter paciência.
Mas hoje está difícil. Conduzo minha vida na esperança de exprimir coerência.
Tentar minimizar o abismo de pensar, sentir e agir.
Mas a cadência é tão avessa, que num súbito instante percebo que ajo depois penso e por consequência sinto. E vejo culpa na lógica inversa que ocorrera.
'Me recuso, faço hora, vou na valsa, a vida é tão rara.'
Preciso de tempo e paciência porque o mundo vai girar cada vez mais veloz, eu sei.
Meu 'EU' precisa desse tempo, para entender a legitimidade das minhas questões, de onde elas vem e para que servem e finalmente para onde quero que elas vão.
'Será que é tempo que nos falta para perceber, será que temos esse tempo para perder?'

Não pretendia fazer do blog um despejo, mas  me foi útil organizar as idéias confusas, obscuras, doídas aqui. Desde o início havia esse propósito, vamos sublimar nessa via. E funciona!
Perdoe-me os leitores. A vocês também peço, PACIÊNCIA!


terça-feira, 1 de maio de 2012

Cobrir e despir

Eu gosto de olhar para vida. De olhar para dentro e para fora. Sobrevoar.
Eu gosto de imaginar - não tão humildemente como deveria - Deus, que vê tudo lá de cima, com a piedade que Ele tem, mas ao mesmo tempo com a unipresença que é só Dele.
É pretencioso mas vou dizer. Às vezes eu tento, também enxergar lá de cima as coisas daqui. Num exercício de compreender a vida, de compreender os passos, o percurso, o rumo da humanidade, sobretudo da minha humanidade. E é frustrante não ter o mesmo olhar de Deus. Porque eu não entendo, não tenho ciência como me agradaria ter. A cada dia eu questiono o 'não saber', como se eu merecesse esse bem e como se fosse um bem. Não dá para concluir que é.
Particularmente quero falar da construção de afetos. Na verdade o que interessa, não é um 'saber' lógico, de como as coisas se dão na vida, é um 'saber' socioemocional. Todo ser humano já se perguntou, por que eu sou como eu sou? Ou já projetou a pergunta  - Por que ele é quem é? Ou ainda por que eu não sou como ele é? E nisso há um determinismo contundente, fatalmente insistente, difícil de lidar. E todo o manejo do analista consite em saber mexer nisso. Tarefa árdua de questionar: quem é o quê? No máximo - com o perdão do gerúndio - nós estamos sendo. Não convence, todos sabemos disso. Saber que 'estamos sendo' é muito mais difícil, por motivos notórios. Abre espaço para mudança. Ser quem se é - não se surpreenda - é muito fácil, complexo é deixar de ser. Se despir diante do outro pode ser tortuoso. (Ai entenda o despir-se como quiser, de um jeito ou de outro ele é emblemático.) A vida exige uma roupagem diferente todos os dias. Conforme a estação, a ocasião, dependendo da companhia e até mesmo da solidão, precisamos nos vestir de uma ou outra maneira. O 'ser na vida' é dinâmico, de uma maneira que muitas vezes não conseguimos suportar. Deus, possivelmente tenta nos mostrar isso. Na hora que você acha que o tempo vai firmar, vem um temporal e exige de você, remanejar a agenda, reprogramar viagem, desfazer planos. Esse, com certeza, é o exemplo mais bobo, da lição maior.
E acho que Deus sabe que, às vezes, a gente precisa se cobrir também. O frio dói, por vezes, de maneira insuportável. A friagem que vem na hora que a gente precisa se despir é avassaladora. E temos medo, muito medo. Muitos de nós prefere se acomodar vestindo o pijama mais velho, aquele já surrado, furado, que ganhou no aniversário de 15 anos, e se abrigar debaixo do edredon que cobre tudo, para ninguém ver que o pijama é velho e feio. Fazemos isso a todo tempo com nosso 'eu' e com essas tais características socioemocionais que julgamos ser nossa constiuição e  nos agarramos a elas, não tiramos do 'corpo' de jeito nenhum, porque por mais que sejam 'velhas' são confortáveis demais.
Nós não precisamos jogar todos os nossos pijamos velhos de uma só vez, porque eles são necessários. Para além do consumo sem sentido, comprar roupas novas de vez em quando faz bem. Precisamos nos despir, nos ver nus, na expressão apropriada 'como viemos ao mundo'. Temos que abandonar um pouco desse 'eu' estático e imutável que incoscientemente criamos para sustentar a não mudança. E mais uma vez, é no corriqueiro que a vida ensina... Ah e Deus também.

A gente se acostuma, mas não devia...

"Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.

A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor. E, porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora. E, porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E, porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E, à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.

A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora. A tomar o café correndo porque está atrasado. A ler o jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem. A comer sanduíche porque não dá para almoçar. A sair do trabalho porque já é noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.

A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra. E, aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja números para os mortos. E, aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações de paz. E, não acreditando nas negociações de paz, aceita ler todo dia da guerra, dos números, da longa duração.

A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisava tanto ser visto.

A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o de que necessita. E a lutar para ganhar o dinheiro com que pagar. E a ganhar menos do que precisa. E a fazer fila para pagar. E a pagar mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez vai pagar mais. E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobra.

A gente se acostuma a andar na rua e ver cartazes. A abrir as revistas e ver anúncios. A ligar a televisão e assistir a comerciais. A ir ao cinema e engolir publicidade. A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.

A gente se acostuma à poluição. Às salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro. À luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam na luz natural. Às bactérias da água potável. À contaminação da água do mar. À lenta morte dos rios. Se acostuma a não ouvir passarinho, a não ter galo de madrugada, a temer a hidrofobia dos cães, a não colher fruta no pé, a não ter sequer uma planta.

A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se a praia está contaminada, a gente molha só os pés e sua no resto do corpo. Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana. E se no fim de semana não há muito o que fazer a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado.

A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se de faca e baioneta, para poupar o peito. A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que, gasta de tanto se acostumar, perde-se de si mesma.

Eu sei que a gente se acostuma, mas não devia" Marina Colasanti